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Tópico da Política, Ambiente e Economia

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Citação de Lebohang, há 3 horas:

Não sei se alguém acompanhou a polémica da carta aberta dos 67 académicos ao Marchi a propósito do seu livro sobre o Chega (sendo que muitos deles posteriormente reconheceram que nem sequer leram o livro) mas o Daniel Oliveira fez um artigo muito bom sobre o livro no Expresso (este, de facto, leu-o) e o Marchi respondeu, aparentemente, com elegância e educação.

Custava muito o grupo dos 67 ter feito isto ao invés de ir para a praça pública fazer aparato desnecessário?

Podes pôr o texto do Daniel?

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Citação de Mayday, há 9 minutos:

Podes pôr o texto do Daniel?

 

Citação

Riccardo Marchi é académico e especialista em extrema-direita ou, como se apresenta no livro, em “radicalismo de direita”. Decidiu escrever um livro sobre o Chega. No início de “A Nova Direita Anti-sistema — O Caso do Chega” (Edições 70) refere-se a este trabalho como “uma investigação aprofundada”. Marchi não é jornalista, por isso depreende-se que se trata de um ensaio académico. E só pode ser lido assim.

Perante as suas entrevistas, um conjunto de académicos assinou um texto em que acusava Marchi de branqueamento do Chega. Logo depois, vários colunistas vieram rasgar as vestes perante mais este ato censório. Não estiveram especialmente ativos no caso da Nova SBE, em que mecenas de uma faculdade pressionaram para que uma académica deixasse de ser associada à instituição com a sua assinatura. Uma ameaça plausível de censura, por os seus autores terem poder efetivo para a exercer. Tudo isto segue uma espécie de coreografia em que cada um acha que cumpre o seu papel. A esquerda indigna-se em grupo contra o que poderia ser individualmente contestado, a direita indigna-se individualmente por haver quem se atreva a contestar o que ela diz.

Tratemos do que é aparentemente menos relevante: o livro. É que há uma coisa que une quase todos os autores que vieram a público indignar-se com as críticas que foram feitas a Marchi: reconhecem que não o leram. Se alguém subscreveu aquele abaixo-assinado apenas com base em entrevistas, não lendo o livro, também fez mal. E os que reagiram à crítica sem conhecerem o que era criticado limitaram-se a picar o ponto do “espírito-livre-que-é-censurado-pelo-politicamente-correto” sem sequer saberem se as críticas eram justas e legítimas. Estas reações já são quase burocráticas, sem qualquer significado que não seja a construção de uma narrativa de vitimização. Discordo do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo... por isso calem-se!

Quem tenha interesse por este tema e queira ter acesso a um trabalho rigoroso e distanciado que permita perceber melhor este fenómeno, teria aparentes razões para ler um livro sobre o Chega de um autor com o conhecimento que Riccardo Marchi tem da extrema-direita e direitas radicais portuguesas. Mas, apesar de algumas descrições de lutas internas travadas por dirigentes do Chega que podem ser úteis para quem acompanha o partido, este livro não é um trabalho académico desapaixonado, como nos promete António Costa Pinto na badana. Se fosse distante e desapaixonado, a irritação com a normalização de um fenómeno que muitos acharão abjeto seria compreensível mas errada. Neste caso, é justificadíssima. Quem o ler, perderá umas horas de vida com uma autoanálise acrítica do Chega. Quem critica o trabalho de Marchi através das entrevistas faz mal. É no livro que tem todo o material.

Ventura sem falhas

Sendo André Ventura uma figura contraditória, o capítulo dedicado à sua biografia deveria ser rico e denso. Mas surge ao bom estilo “Vida Soviética”. A superficialidade plana do seu perfil, que encaixa sem falhas nos objetivos políticos do biografado e do seu partido, descreve-nos um católico, tímido e brilhante, talvez ambicioso e impaciente, marcado pela vida no subúrbio mas sem marca do mundo da alta advocacia fiscal em que se move. Nem sinal das visíveis contradições que todos podemos observar.

A sua história é contada tendo como base algumas entrevistas à comunicação social, conversas do autor com André Ventura e testemunhos de pessoas que o foram conhecendo ao longo da sua vida pessoal, política e académica. O habitual. Só que todos os testemunhos diretos recolhidos por Marchi são de atuais dirigentes, militantes ou colaboradores do partido. Os colegas de escola, de faculdade ou do PSD e JSD que foram ouvidos são do Chega ou trabalham para o Chega. Quem, por via de depoimento ao autor, nos conta a vida de Ventura antes do Chega, que consta no primeiro capítulo, é Fernanda Marques Lopes (presidente do conselho de jurisdição do Chega), Nuno Afonso (vice-presidente), João Gomes de Almeida (assessor de campanha e marketing), Ricardo Regalla (vogal da direção) e Nelson Dias Silva (secretário da mesa da assembleia). Nem uma autobiografia é tão politicamente controlada. Não é ouvido ninguém do PSD (se foi, isso não aparece na lista de entrevistados) que não o tenha seguido para o seu novo projeto político e possa desmentir a versão gloriosa do homem descontente com um partido acomodado.

O problema não são apenas as fontes orais. É o desprezo por fontes escritas que seriam úteis. Para contar o percurso académico e falar das opiniões politico-jurídicas de André Ventura no tempo da Universidade, Riccardo Marchi recorre a testemunhos pessoais e diretos de ex-colegas que o seguiram para o Chega. Mas passa pela sua famosa tese de doutoramento como por vinha vindimada. É verdade que volta à tese noutro capítulo, quando trata das polémicas que envolveram o partido. Mas apenas para mostrar como isso foi usado pelos seus detratores e não incomodou os fundadores do Chega. A tese é usada como caso para ataque ao partido e para analisar as suas repercussões internas (nada contra, é útil), mas ignorada como fonte para conhecer o pensamento de Ventura à época. Sendo que o doutoramento é sobre grande parte dos temas de que Ventura hoje fala — segurança, perceção de criminalidade e racismo. É assombroso que um académico que pretende descrever o percurso intelectual de um líder político decida ignorar, quando o faz, o conteúdo da sua tese de doutoramento, onde esse pensamento está fixado no tempo com especial clareza (assim como ignora o conteúdo da sua produção literária, incluindo romances, que casa mal com o retrato do católico devoto).

Como é evidente, todo o percurso de vida de Ventura, contado pelos seus colegas de partido, está adaptado à narrativa que se quer construir do líder. Nem se trata de a história de vida do biografado ser positiva. Ela é politicamente construída. E isto acontece em todo o livro e em quase todos os temas, apenas com matizes em alguns casos mais mediáticos. Das 22 entrevistas que Riccardo Marchi realizou e de que nos dá conta, só uma foi a alguém que não é fundador, dirigente ou colaborador do partido — o jornalista Sebastião Bugalho. Até a outra jornalista referida, que fez a primeira grande entrevista a Ventura, é a atual assessora de imprensa do Chega. Nunca saímos do seu círculo de confiança política.

Na descrição de Marchi, quase todas as coisas acontecem a Ventura por acaso. A ligação ao Benfica e a Luís Filipe Vieira resulta apenas da relação com um primo do pai (Pedro Guerra), e o que o une à CMTV advém da relação com o jornalista Miguel Fernandes. Conceda-se que assim é. Só que acontece o mesmo com a sua primeira grande entrevista. Apesar de o próprio Ricardo Marchi sublinhar que a jornalista Patrícia Martins de Carvalho escreveu “mais de uma centena de artigos sobre o Chega”, a entrevista ao “Notícias ao Minuto” “surge de forma bastante casual”. Tão casual como a prolixa produção de artigos sobre um partido sem eleitos de que foi autora a mesmíssima Patrícia Martins de Carvalho, que talvez casualmente viria a ser assessora de imprensa do Chega. A hostilidade de alguns órgãos de comunicação social é explicada por várias teorias, até pela estrutura acionista. Já a simpatia do “I” e do “Sol” resultam apenas do interesse do diretor pelo fenómeno. Conspirativo ou cândido, conforme a necessidade. Assim vendem a coisa a Marchi, assim ele a revende a nós.

Factos seletivos

É logo na parte biográfica que Marchi começa a desenhar a tese do homem que não é racista ou de extrema-direita, apenas veículo da indignação de um povo ignorado pelas elites. Da mesma forma que se esforça por nunca mostrar que Ventura já defendeu o oposto do que defende hoje, atribui às suas posições mais polémicas falta de intencionalidade política. Um mero instinto pragmático que o empurra para o óbvio. O autor não quer pintar o retrato de um oportunista mas, em simultâneo, tenta afastar Ventura de qualquer convicção ideológica mais problemática. O equilíbrio serve sempre o mesmo propósito: o da direita antissistema, que é como Ventura quer ser retratado. Nem de extrema-direita nem um simples oportunista. E esta demanda política exige uma enorme ginástica ao longo do livro.

Sobre o racismo, Riccardo Marchi limita-se a replicar o discurso de Ventura, assinalando que ele apenas quer que todos cumpram as regras. Nisto há convicção. Mas nas declarações mais chocantemente racistas o autor do livro assume sempre o oportunismo mediático. O que Ventura diz tem ou não o seu valor facial conforme isso dê jeito à tese de Marchi. Se se desvia da tese da direita antissistema que não é racista, é propaganda para ganhar espaço. Se se aproxima, revela o seu pensamento. Umas vezes é um “primus inter pares num partido que veio dar voz a uma série de vozes que estavam sem representação”, outras um génio político e comunicacional. Decide Marchi — ou o Chega — o que deve ou não ser lido como posição política sincera.

Assim, pode concluir-se que, apesar de todas as declarações indiscutivelmente racistas, não há racismo no Chega. Excecionalmente, o Chega tem reações “atabalhoadas”, como no caso do Marega e do confinamento dos ciganos. Nada de que Marchi queira tirar consequências políticas. Estas declarações são analisadas como meros “episódios mediáticos que lhe conferem protagonismo e lhe garantem um destaque invulgar da opinião pública”. O Chega não é racista porque diz que não é racista. Marchi diz que as correntes mais radicais do Chega defendem um “nacionalismo cívico” e não um “nacionalismo étnico”, só porque isto é afirmado. E trata o facto de André Ventura ter mandado uma deputada negra para a sua terra como uma mera “chamada de atenção irónica”. Lê-se na página do partido: “Bem-vindos os de todas as raças desde que respeitem a nossa raça (...). Não queremos os qualquer-coisa-Khan que um dia perto do nosso Natal puxam de uma faca e desatam a assassinar pacíficos transeuntes.” Marchi, que em geral não cita frases deste género (nem esta), não vislumbra aqui nenhum sinal de racismo. Afinal de contas, não se quer expulsar ninguém. São todos bem-vindos desde que respeitem “a nossa” raça.

A utilização seletiva dos factos continua quando Marchi chega à candidatura de André Ventura à Câmara de Loures. No caso há uma utilização muito restrita de fontes, que é o problema mais transversal a todo o livro. Para saber o que levou ao fim da coligação do PSD com o CDS, por exemplo, o autor não recolhe informação direta junto do CDS, que a rompeu depois das declarações de Ventura sobre os ciganos. Mas não tem dificuldade em partilhar connosco a sua convicção: “Na verdade, a base local do CDS não estava incomodada com as declarações de Ventura e reage bastante mal a decisão da cúpula.” Não se trata de achar que a afirmação é falsa, mas de se esperar que um estudioso nos diga de onde ela vem.

A narrativa da cúpula que odeia o Chega e das bases que gostam dele é, já agora, repetida outras vezes e casa com o discurso político que Ventura e Marchi querem passar. Regressa, por exemplo, a propósito dos temores da Igreja Católica de qualquer colagem ao Chega: “Os bispos olham para o Chega através da lente do poder vigente em Portugal, que não querem de todo hostilizar, ao passo que alguns padres e sectores leigos encaram positivamente o Chega como opositor resoluto dos maiores inimigos da Igreja: o marxismo cultural e o liberalismo moral.” Fonte? Não fazemos ideia.

Quando os rompimentos não são explicados pelo trabalho das cúpulas contra as bases, são explicados por oportunismo. As críticas da vice-presidente do PPM, Aline Hall de Beuvink, a uma coligação nas europeias anunciada antes de passar pelos órgãos nacionais são explicadas “por pressões do CDS Lisboa junto da vereadora monárquica na coligação CDS-MPT-PPM”. A fonte é, aparentemente, o próprio Chega.

Casos que são boatos

Tudo se mantém igual quando Riccardo Marchi nos conta a história do Chega. Tirando Jorge Castela e Pedro Perestrello, que não são propriamente bem tratados, não vai ouvir os já muitos dissidentes do partido. O resultado é a falta de escrutínio a tudo o que lhe é dito por dirigentes do Chega. O que contrasta com o escrutínio apertado que faz a todas as críticas que são dirigidas ao partido. Sempre que perde mais tempo com um episódio interno é para nos contar como um radical ou racista foi afastado ou silenciado. Mas não segue de forma sistemática nenhuma ponta solta, nenhuma acusação pública, nem sequer trabalhos bastante pormenorizados publicados na “Visão”, “Sábado” ou “Diário de Notícias”. Só quando isso cumpra o papel de dar ao Chega a oportunidade de contar a sua versão. Nunca sai da linha autorizada.

Apesar de saber que a campanha do Chega teve uma dimensão poucas vezes vista em partidos sem representação parlamentar — sobretudo numa das suas componentes mais caras, que são os outdoors —, o tema do financiamento é irrelevante num livro que dedica longas descrições a questões orgânicas e de funcionamento. Marchi compra a tese de que tudo foi feito com pouco dinheiro e segue em frente. O tema mais sensível em todos os partidos resume-se a “boatos” e “polémicas que investem sempre contra o Chega”. A previsão de meio milhão de euros no orçamento das europeias, de que €400 mil viriam de “angariação de fundos”, é tratada como mera inexperiência. Basta ler a edição de 23 de julho da “Visão” para perceber todas as relações que passam ao lado do académico que melhor conhece o Chega. Ou que ele opta por ignorar. Mais “boatos”, seguramente.

O envolvimento de Ventura no caso Tutti-Frutti é burocraticamente arrumado como um “affair” que “não teve consequência legal”. A violação da promessa de exclusividade tem apenas a resposta oficial que não esmorece “a ofensiva dos adversários políticos e mediáticos”, não sendo tratada como um problema real. O excelente trabalho de Miguel Carvalho (o jornalista que acompanha a extrema-direita de forma mais consequente e profunda), na “Visão”, é tratado como “boato mediático” para abrir “mais uma frente de vigilância para os detratores do partido”. Nada, do tanto que foi publicado serve de ponto de partida para qualquer investigação do autor. Só para a resposta do partido, que ele reproduz sem qualquer filtro crítico ou exigência de rigor e verdade.

Mesmo no tema das assinaturas para a legalização do partido, que levou a um processo no DCIAP, o livro compra a tese mais benigna possível, como sempre. Comparem o que é dito no livro — e Marchi entrevistou Jorge Castela — e o que saiu na “Sábado” sobre o “percalço” das assinaturas. No livro, Castela “aponta o dedo ao amadorismo dos responsáveis do processo”. Na revista, a acusação vai bem mais longe do que isso. Algumas acusações de Jorge Castela e Pedro Perestrello são parcialmente reproduzidas no livro, quando se fala da alteração da declaração de princípios. Mas, milagrosamente, a expressão “alegadamente” surge finalmente para referir a versão de alguém sobre a história do partido. Quando surge, é sempre associada a uma crítica a Ventura e ao Chega.

Um dos poucos temas em que se reconhecem, no livro, falhas graves do partido é na elaboração do programa. Outro é o caso da subvenção vitalícia de Sousa Lara. Curiosamente, dois em que o próprio Chega reconheceu o seu erro. A polémica sobre o programa, que no capítulo sobre o partido é tratada como fruto de amadorismo e falta de cuidado, passa a ser relevante quando Riccardo Marchi quer falar da identidade do Chega. O que é mera arma de arremesso para quem critica o Chega passa a ter substância quando serve o autor.

Não é de extrema-direita

Riccardo Marchi diz logo no início do livro ao que vem: “O Chega polariza. Nas redes sociais é o dom Sebastião, o salvador da Pátria, o artífice da palingénese nacional. Na comunicação social, o chega é a bête noire, a ameaça à democracia, o protótipo do racismo, da homofobia, do fascismo, o voluntário português da legião dos bárbaros transnacionais ao assalto dos valores do projeto europeu.” O tom colorido e falsamente neutro da descrição não esconde a dicotomia intencional e falsa. Pelo menos nas redes sociais há gente de todo o tipo e muito provavelmente se encontrarão por lá mais referências negativas ao Chega do que positivas. Para o saber, teríamos de ir ver números ou algum dado aproximativo que não suporta a afirmação de Marchi. Em todo o livro, o impressionismo, inaceitável num académico, toma o lugar do rigor. Neste caso, para decalcar a própria narrativa do Chega: de um lado o povo, nas redes sociais, do outro a elite, na comunicação social. Marchi não observa, repete o guião da propaganda.

O problema não é o que Marchi considera ser “extrema-direita” ou “racismo”. Isso está dentro do que pode ser debatido e, sobretudo na conclusão do livro, o autor fá-lo com afinco. A diferenciação de “extrema-direita” e “direita radical” é um jogo semântico resolvido numa penada, nas páginas finais. Nela, ignoram-se as condições políticas e sociais em que qualquer espaço político em crescimento opera. A hibridez ideológica faz parte de todos os movimentos políticos em expansão e o que salta à vista no livro é a confrangedora pobreza teórica dos seus dirigentes, a que o autor tenta dar uma densidade “antissistema”. Compará-los a movimentos de nicho e em queda, que tendem sempre a cristalizar a sua identidade, é um exercício fútil. O que os distingue não é a matriz ideológica, é a implantação política. A primeira é sempre afetada pela segunda. E por extremismo e radicalismo terem de ser conceitos atualizáveis, compará-los com movimentos de há cem anos é ainda mais absurdo. Seja como for, fica-se curioso em saber se Marchi aplicará a distinção entre extremismo e radicalismo (a utilização de meios violentos para abate do regime em oposição ao respeito pelas regras do jogo para mudar o regime) à esquerda, para concluir que também não há extrema-esquerda. Nem em Portugal nem em praticamente nenhum país europeu.

Tudo isto é discutível. O que não se aceita é a mentira ou manipulação para fingir que nem sequer existe extrema-direita dentro do Chega: “Ao navegar nos perfis dos fundadores do Chega e ao seguir as conversas dos apoiantes do partido nas redes sociais não encontrei nada de todo este património ideológico e de militância.” Aparentemente, Riccardo Marchi nunca se cruzou com nenhum dos jovens aspirantes a dirigentes da juventude do Chega que deixam mensagens racistas bastante explícitas nas redes sociais. Seja Carlos Tasanis, que disse a uma portuguesa de origem brasileira que ela não era portuguesa, porque “os portugueses são brancos e europeus”, ou Dário Soares, que partilhou um tweet onde se defendia que não era errado alguém que quer ter netos e bisnetos brancos portugueses convencer os filhos a não se casarem com pessoas de outras etnias.

Na sua afirmação, o autor também decide ignorar o percurso político de alguns dirigentes que passaram por organizações neonazis. Muitas páginas à frente trata disso, para abordar uma das polémicas que afetou o partido. E reconhece a militância de vários destacados dirigentes do Chega no NOS, dirigido por Mário Machado, no Portugueses Primeiro e no PNR. Já nem se fala da passagem do vice-presidente, Diogo Pacheco de Amorim, pelo MDLP, que encaixa como uma luva na definição que o próprio Marchi faz de extrema-direita. As notícias sobre os passados que contrariam o que Marchi diz sobre o partido são tratadas pelo o autor como “alarmistas”. Mesmo o passado de Luís Graça, que foi dirigente do PNR e é presidente da mesa da assembleia do Chega, é descrito como uma coisa fugaz, como se o homem apenas tivesse querido democratizar o partido de que foi dirigente: “Aqui, tenta uma reforma do liberal PNR.” Até a passagem pelo PNR de uma das principais figuras do partido consegue ser benigna.

O ventríloquo do Chega

Logo na introdução, Riccardo faz uma longa lista de repercussões positivas do nascimento do Chega para a sociedade e para a política portuguesas. Não lhe ocorre nenhuma negativa ou preocupante. Só é enganado quem quer. Porque este livro não é uma análise, é uma resposta: “Perante o amontoado crescente de opiniões e análises expressas por vozes externas ao Chega e reproduzidas copiosamente na comunicação social, privilegiei aqui a narração direta — e menos conhecida — dos homens envolvidos no projeto do Chega desde a primeira hora.” Não se limitou a privilegiar, ficou mesmo por aí. Sem qualquer sentido crítico ou escrutínio perante o que lhe foi sendo dito por fundadores e dirigentes do partido. E sem avisar, em tantas entrevistas que deu, que isto não é mais do que a versão do Chega sobre ele mesmo.

Privilegia tanto a narração direta que, a dada altura, já não sabemos quem fala — se Riccardo Marchi, se o Chega. Adota ele próprio termos como “marxismo cultural”, apesar da evidente falta de rigor teórico do termo. E dedica-lhe longos parágrafos, repetindo a cartilha pouco informada da extrema-direita sobre o assunto. Assim como se refere à fase democrática da nossa história usando sempre e repetidamente o termo que as várias direitas radicais gostam: III República. Ao fugir da caracterização democrática do regime vigente, Marchi pode traçar sem perigo uma linha que põe o Chega no exterior do sistema e todos os restantes partidos com representação parlamentar dentro dele. Está fora do “sistema” sem estar fora da “democracia”. Porque o regime em que vivemos, nascido do 25 de Abril e da consolidação posterior, é desapossado pelo próprio Marchi do que o distingue dos anteriores: a democracia.

A apropriação dos argumentos do Chega vai ao ponto de o autor falar de um estudo apresentado por Ventura que diz que só 15% dos ciganos vivem do seu trabalho sem dizer que estudo é esse. Marchi não partilha essa informação com os leitores. É como se a verdade e a mentira se esgotassem no circulo restrito de dirigentes do Chega.

Não é preciso dizer que este livro é um branqueamento do Chega, porque isso denuncia uma expectativa prévia de qualquer denúncia ou crítica ao partido. Basta dizer o que realmente é: uma peça de propaganda em que é dada ao Chega a oportunidade de se defender e escrever a sua própria história. Um académico pode fazer propaganda? Pode fazer o que quiser. E qualquer um pode denunciar a fraude de querer fazer passar isto por uma investigação. Nem como trabalho jornalístico este livro vale uma pevide.

Escreve Marchi na introdução: “Finalmente, uma última nota acerca da preocupação expressa pelo editor, quando me convidou para este desafio: o perigo de o ensaio resvalar para a diabolização ou, ainda pior, para a apologia.” Pois conseguiu uma autoapologia.

As vítimas profissionais da censura

Feita a descrição do livro para perceber se a crítica que lhe é feita é justa, falta falar do tal texto coletivo (“Contra a higienização académica do racismo e fascismo do Chega”, “Público” de 11 de julho). Em nenhum momento se propõe ali qualquer tipo de censura. Não se pede que Riccardo Marchi seja silenciado, que o seu trabalho não seja publicado, que ele seja afastado da academia. O que se diz é que um académico tem de “ver para lá das fachadas, relacionar, cotejar o que é dito com o que é feito, encontrar contradições, desocultar”. E que “a produção de conhecimento académico não se coaduna com propósitos de normalização, legitimação e branqueamento de um partido racista e com desígnios antidemocráticos”. Contesta-se o seu trabalho, aparentemente com base na entrevista que deu à RTP.

Não se pode exigir que em vez de censura se usem argumentos contra o que se discorda e quando esses argumentos aparecem grita-se que é censura. Ninguém quis queimar o livro (Henrique Raposo) ou expulsar professores como no fascismo (Rui Ramos, sempre imparável na relativização do passado), quis-se fazer o que se faz com os livros, quando são maus: criticá-los. No caso, baseando-se no mesmo em que se basearam os que vieram em sua defesa: nas entrevistas que deu. Se é verdade que a esquerda se ofende com facilidade, é cansativa esta recorrente vitimização da direita, sempre pronta para se declarar censurada quando é alvo de crítica. Banalizam a própria ideia de censura porque querem ficar a falar sozinhos. Só que uma academia livre é uma academia onde se contestam os trabalhos dos outros.

Aquele texto coletivo era necessário? Provavelmente não. Qualquer dos signatários, com acesso fácil à imprensa, poderia ter feito o que aqui se faz com mais competência. Nem tudo tem de ser movimento social. Mas para isso era preciso que todos fizessem o que nem os defensores de Marchi lhe fizeram o favor de fazer: passar umas penosas horas a ler aquele pastel.

Apesar da simpatia evidente que tem pelo Chega, é possível que Marchi nem seja movido por qualquer intencionalidade política. Pode ser que pese mais a vontade de manter um acesso privilegiado ao que é o seu objeto de estudo, que não deve hostilizar. Ou essa tentação tão humana de procurar os factos que confirmam uma tese em vez da tese que os factos permitem. Concedamos a Riccardo Marchi o benefício da possibilidade mais benigna. Mas estes dois pecados comuns aconselhariam maior cautela, com recolha mais cuidada de dados empíricos, escolha mais rigorosa e diversificada das fontes e menos espaço para meras perceções. Só que isso não se coaduna com a pressa em publicar um livro em cima dos acontecimentos, sem que o seu projeto de investigação, de que fala na introdução, já esteja maduro.

O mesmo excesso de proximidade (até afetiva) de Riccardo Marchi ao seu objeto de estudo, que não lhe permite fazer um trabalho desapaixonado e rigoroso sobre o Chega, dá-lhe acesso a informação útil. Aquela que lhe é dada pelo Chega a falar de si mesmo. E ela pode vir a ser usada por jornalistas ou outros investigadores independentes para fazerem o trabalho de contraditório que ele não fez. Mesmo com as suas fragilidades, Marchi é útil. A academia tem sempre a ganhar com o máximo de pluralismo. Até a propaganda é fonte.

É a fraqueza do seu livro e não o que ele disse nas entrevistas que é relevante. É ela e não a indisfarçável simpatia que tem pelo Chega que conta. Quando quiserem apontar isso a um académico específico, os “calimeros” que veem censura em qualquer crítica devem fazê-lo. Já o fizeram no passado e com ruído (e tantas vezes injustamente) com Boaventura Sousa Santos e não houve acusações de censura. Chama-se liberdade e pluralismo. A propaganda trajada de ciência é sempre medíocre, seja de esquerda ou de direita. Isto não é dizer que a ciência é politicamente neutra, é dizer que há mínimos de exigência para poder usar essa roupagem. Riccardo Marchi não cumpriu, neste livro, esses mínimos. Não será o único. Este apenas tem a proteção intelectual pavloviana de quem nem sequer o leu. Devia o seu livro ser publicado? Obviamente. E criticado por quem acha que merece crítica.

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Estratégia do Chega para colar o CDS e o PSD à manif. 

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Citação de Lebohang, Em 01/08/2020 at 19:59:

Já agora no UK, a propósito da cultura, um conjunto de atores famosos anunciou a criação de um fundo de 1.7M de libras para os profissionais de teatro que será reforçado com uma % do cachet deles em futuros projetos nos próximos três anos.

Realidade completamente diferente da nossa mas fica a nota.

Em Portugal:

Os requerentes que forem aceites nesta linha de apoio terão de descontar o apoio extraordinário de 219 euros que receberam da Segurança Social em abril e em maio. O que significa que, em vez de um máximo de 1.316,43 euros, receberão 877 euros.

Três linhas de apoio social na Cultura estão abertas

 

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Citação de Plagio o Original, há 16 horas:

 

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Spoiler

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meu deus

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Citação de Lebohang, há 22 horas:

Não sei se alguém acompanhou a polémica da carta aberta dos 67 académicos ao Marchi a propósito do seu livro sobre o Chega (sendo que muitos deles posteriormente reconheceram que nem sequer leram o livro) mas o Daniel Oliveira fez um artigo muito bom sobre o livro no Expresso (este, de facto, leu-o) e o Marchi respondeu, aparentemente, com elegância e educação.

Custava muito o grupo dos 67 ter feito isto ao invés de ir para a praça pública fazer aparato desnecessário?

Consegues arranjar o artigo do Daniel Oliveira?

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Citação de antifa, há 1 minuto:

Consegues arranjar o artigo do Daniel Oliveira?

 

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Citação de Mayday, há 25 minutos:

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meu deus

O Ventura, antes de subir ao palanque para discursar, deu um abraço num negro. Pensava eu que, afinal era o o amigo negro do Ventura que todos os racistas têm. Afinal não, era um trabalhador do comicio.

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Citação de Solero, há 3 minutos:

aGoRa TuDo É rAcIsMo

Isto de um racista ser chamado de racista começa a ser inaceitável.

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Citação de Mayday, há 8 horas:

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meu deus

f*da-se, essa foto da menina põe-me genuinamente triste. que p*ta de pais que ela deve ter

  • Concordo! 1

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Citação de JackBauerPT, há 2 horas:

Juan Carlos vai para a Night's Watch em princípio na muralha junto a Cascais.

Que o Costa o convença a ficar. Seria bom para Portugal ter alguém como o Juan Carlos cá em Portugal, a valorizar o nosso País para o mundo todo ver, já para não falar no prémio que seria para os profissionais de saúde. 

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Um corrupto só podia exilar-se em Portugal. Vai estar entre os seus. Vai sentir-se em casa.

Nasceu no exílio e vai morrer no exílio. 

Editado por Mayday
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Citação de JackBauerPT, há 12 horas:

Juan Carlos vai para a Night's Watch em princípio na muralha junto a Cascais.

génio

 

edit. afinal segundo os media espanhóis, foi para além da muralha, para a Republica Dominicana

Editado por antifa

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Citação de antifa, há 3 horas:

génio

 

edit. afinal segundo os media espanhóis, foi para além da muralha, para a Republica Dominicana

vai é ficar na cabana junto à praia

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